
Um diário de viagem que une espaço físico e interior, uma série de estados de transe renderizados em cores vívidas, um portal delirante para o éter. O primeiro álbum de Marlene Ribeiro sob o seu próprio nome é tudo isto e muito mais. Toquei No Sol é um capítulo fresco para esta artista única, sendo, de longe, a sua obra mais melódica e transcendente até hoje no âmbito do seu hipnótico dreampop.
Este é apenas o mais recente lançamento numa longa história de experimentação sonora de Marlene, que inclui o seu trabalho anterior como Negra Branca, através de várias edições em editoras como Tesla Tapes e Zamzam, e um longo período como membro dos iconoclastas sonoros e pilares da Rocket, GNOD, sem esquecer colaborações com artistas como Valentina Magaletti e Thurston Moore.
Toquei No Sol é também um disco com um sentido de lugar muito distintivo e potente, paradoxalmente, apesar de ter sido construído a partir de gravações feitas na Irlanda, País de Gales, Portugal, Madeira e Salford. A sua génese surgiu através de uma visita à avó materna de Marlene, Emília, cuja influência, assim como os sons da sua cozinha em Portugal, pode ser ouvida na primeira faixa do álbum, Quatro Palavras.
“Emília acabou por se entusiasmar com o facto de eu conseguir gravar coisas lá e, totalmente inesperado para mim, contou-me que costumava cantar muito quando era jovem, a ponto de lhe terem oferecido tempo em estúdio, mas ela recusou por medo do que isso poderia implicar naqueles tempos,” relata Marlene. “A partir desse momento planeei incluí-la neste disco, como que dando-lhe a oportunidade que nunca teve de colocar a sua voz no mundo.”
Em outras faixas, uma graça irresistivelmente cativante une-se a uma abordagem utilitária ao som e à textura. O ritualístico Sangue De Lua de Lobo (primeiro lançado numa compilação da Sofia Records, Songs Of The Lunar Eclipse) inclui objetos aleatórios do então jardim de Marlene na Irlanda, enquanto em Forever, flutuante e beatífica, as linhas de percussão são construídas a partir dos sons de panelas e tachos da sua própria cozinha em Salford.
Em todos os momentos, a sua abordagem ágil à melodia sobressai, mesmo quando as faixas evocam visões de neblinas de calor, espaços meditativos e epifanias nocturnas. Embora os ouvintes possam identificar ecos da psicadelia em loops de Person Pitch de Panda Bear ou as ululações incantatórias de Pocahaunted nestes paisagens sonoras fascinantes e mantras cheios de magia, a verdade é que a estética aqui é muito própria de Marlene.
“É tudo uma grande névoa enevoada de nostalgia, ludicidade, autorreflexão e esperança,” como Marlene própria descreve. Ainda assim, Toquei No Sol é também uma visão transportadora de uma artista que retorna às suas raízes e, ao mesmo tempo, olha para novos horizontes celestiais.